19.3.12

 

Os Portugueses e os Estrangeirismos na Língua Portuguesa


Sobre a relação linguística dos portugueses com os estrangeirismos, proponho-me, no que se segue, tecer algumas considerações gerais e outras de âmbito mais restrito, no que respeita a este algo inveterado costume dos nossos compatriotas.

Valerá também a pena, em ocasião próxima, abordar o uso de estrangeirismos, sobretudo, de anglicismos, no domínio da Economia, das Finanças e da Gestão, mas também de expressões de suposto rigor matemático, como os crescimentos negativos, da Economia e dos salários, os aumentos zero, das tarifas ou dos rendimentos, expressões que fazem a delícia de jornalistas e comentadores, que as entusiasticamente as repetem, sem se deterem um segundo sequer, na apreciação do seu valor lógico.

Às vezes, até as poderemos analisar pelo ângulo humorístico, para, de certa maneira, nos ressarcirmos da vaidade e da arrogância dos seus autores, supostos iluminados do saber económico, conhecimento que começa a ser cada vez mais identificado como a ciência do empobrecimento moderno.

Parecem, no entanto, confirmados o gosto e a mania de os portugueses salpicarem os seus discursos, a propósito e a despropósito, com palavras estrangeiras, principalmente inglesas ou com expressões, ainda que portuguesas, de sintaxe copiada da Língua Inglesa.

No geral, isto é feito com grandes laivos de presunção e de suposta auto-valorização ou auto-promoção. Não há por aí cão nem gato que não solte a toda a hora o seu «é suposto que», o timing, o trade-off , o balanceamento, o site/sai-te, o off the record, o low profile, o leadership, win-win, o quick win, o kick off, o spread, o skill, o lifting, o piercing, o feeling, etc., etc, como se estes termos não tivessem tradução possível no Português, nem a nossa Língua dispusesse de termos equivalentes para traduzir o seu significado.

Só em raros casos, em particular nos relacionados com as inovações tecnológicas, isso é verdade, embora com algum conhecimento e engenho bastante, certamente seja possível descobrir no Português esses termos equivalentes, aparentemente difíceis. A forma desleixada como damos por vencedora a tese da inexistência da equivalência desses termos no nosso idioma assinala a falta de orgulho ou atitude de submissão perante tudo o que vem de fora, logo assumido como melhor ou superior.

Esta nociva atitude dos portugueses assenta, em primeiro lugar, num manifesto grau de incultura, de grande desconhecimento daquilo que é português, a começar no idioma, em geral mal falado, mal escrito, mal pronunciado, mesmo por aqueles que, por profissão, estariam obrigados a usá-lo com propriedade e correcção, desde logo, os jornalistas, os locutores da Rádio e da Televisão, comentadores e analistas da genérica Comunicação Social.

Um pouco de atenção e pudor por parte dos responsáveis desses serviços poderia operar a desejável transformação.

Na oralidade, surgem agora manias diversas como pronunciar as siglas à inglesa. Assim, o antigo MIT, até há alguns anos dito m-i-te, passou a dizer-se à inglesa ou melhor à americana : éme-ai-ti . Veremos se o mesmo irá suceder com a CIA, para passar a dizer-se : ci-ai-ei.

O mesmo poderá acontecer com o FBI - éfe-bi-ai -, a NATO - nei-tou, que já foi OTAN, como ainda hoje é para nuestros hermanos, e outras patetices do género, que traduzem, não um qualquer cosmopolitismo, mas uma execrável propensão para o servilismo, para a admiração basbaque perante tudo o que vem de fora, ao mesmo tempo que votamos ao esquecimento, ao abandono e à incúria um dos nossos maiores patrimónios, base da nossa mais profunda identificação cultural : a Língua, na qual, para Pessoa, como para Eça de Queiroz, creio, reside a nossa verdadeira especificidade cultural, para Pessoa, uma espécie de Pátria.

Claro que os Professores dos vários graus do Ensino poderiam dar aqui uma ajuda preciosa, se se tornassem mais exigentes, primeiro consigo mesmos e, depois, com os seus alunos.

Assim vamos, cheios de vento, no idioma como no resto, proferindo termos grandiloquentes, mas sem dominar regras básicas da velha Gramática, sem as quais as nossas crianças e adolescentes dificilmente conseguirão escrever português com clareza e correcção e, muito menos, inglês que, na verdade, bastante falta lhes fará, na desabrida Globalização dos Mercados, que terão de enfrentar na sua vida adulta.

Porém, desprezando a nossa cultura de origem, a nossa formação ficará sempre deficiente, envergonhando-nos perante a memória dos nossos antepassados, que tão esforçadamente no-la legaram, para que dela nos pudéssemos orgulhar, para que nela firmássemos a nossa dignidade de Povo soberano e independente.

É, por isso, nosso dever irrecusável estimar a nossa cultura, começando por respeitar a natureza da Língua que falamos, sem a desfigurar com a permanente introdução de estrangeirismos, sobretudo quando dispomos de termos equivalentes que os podem substituir com facilidade e vantagem. Basta que estejamos preparados para despender algum esforço intelectual nesse sentido.

Esclareço, todavia, um ponto : nada tenho contra o uso do inglês, mesmo como «lingua franca» dos tempos modernos. Considero até que seja ele o idioma mais apto a desempenhar essa função, por ser relativamente fácil de aprender e de falar, pelo menos num nível elementar, suficiente para qualquer um se fazer entender e entender os seus interlocutores estrangeiros de qualquer nacionalidade.

Nenhum outro idioma, latino ou saxónico, parece estar em melhores condições para tal. Com um vocabulário de 2 000 palavras, já em inglês se pode sobreviver muito bem. Depois disto, a progressão já se torna mais penosa, principalmente no seu domínio escrito. Ainda assim, em qualquer outra língua culta do ocidente e, acredito, também do oriente, a aprendizagem será certamente mais lenta e o seu domínio, por maioria da razão, mais demorado.

Mas, se nisto acordo, já no uso imoderado de termos ingleses na linguagem portuguesa, de uma forma abusiva, impertinente e intolerável, como hoje vemos fazer por muita gente, a maioria por pura pedantaria, isso, reprovo em absoluto.

Com esta tendência desleixada, o português corre o risco de se tornar numa língua degradada, abundantemente contaminada de termos espúrios, desfigurada, espécie de linguajar mesclado, defeituosamente composto de tanto termo contrabandeado, entrado de forma ilegítima no idioma de Camões.

A situação é tanto mais grave, quanto ela ocorre com o aparente beneplácito, se não entusiasmo, dos próprios falantes naturais do português. Consta-me que, no Brasil, se verifica idêntico fenómeno ou talvez até mais agravado, pelo fascínio que a cultura norte-americana, sobretudo a cultura de massas, do mundo do espectáculo, diriam eles, do show-business, exerce sobre os nossos irmãos brasileiros, a avaliar pelo que vemos nas telenovelas.

Muitas vezes, nestas relações linguísticas, os portugueses nem sequer fazem um pequeno esforço para procurar termos equivalentes na sua formosa língua, como a cunharam os seus maiores cultores, desde Fernão Lopes, a António Ferreira, a Camões, a Rodrigues Lobo, a Vieira, Bernardes, Garrett, Herculano, Antero e Eça, para só citar até ao século XIX.

Para sermos merecedores da herança cultural destes nossos valorosos antepassados, deveremos respeitar o veículo dela, a língua, que hoje usamos, como meio de comunicação de todos e para todos, mas também como objecto de arte, para alguns legitimamente mais exigentes, com engenho para tal.

Esse esforço de respeito linguístico implica questionar a utilização despropositada de estrangeirismos, em particular dos actuais anglicismos. Atentemos nos exemplos seguintes: precisaremos mesmo de dizer test-drive ou glamour ou fitness ou readable ou personal trainer ou coach ou mister ou lady ou gentleman ou back up ou table ou ranking ou label ou lay out ou screening ou printer ou delete ou paste ou log in ou user name ou pin ou... ou... ?

Não encontraremos, para todos estes termos ingleses, equivalentes vocábulos em português? Não será tudo isto resultado de uma inaceitável preguiça mental, de mistura com um lamentável desconhecimento geral dos recursos da nossa Língua materna ?

É só contra isto que eu me insurjo. Podemos aprender quantas línguas quisermos e formos capazes, mas, naturalmente, comecemos por respeitar a nossa, estudando-lhe a Gramática, que não foi abolida, com particular atenção para a sintaxe e para a flexão verbal, sobretudo para certos modos e tempos, como os do conjuntivo.

Por conseguinte, não se estranhe, a este propósito, a conjugação dos verbos na 2ª pessoa do plural, como também se deve estudar, com maior cuidado, o imperativo negativo, os verbos irregulares, os defectivos, com especial atenção para a especificidade do verbo haver, etc., etc.

Bem sei que tudo isto é trivial e que, antigamente, os alunos, na sua maioria, que terminavam a Instrução Primária, dominavam regularmente estes assuntos, como saíam desembaraçados na Aritmética, sem hesitações na tabuada e resolvendo problemas quotidianos que envolvessem as quatro operações fundamentais, conversão de unidades, equivalências, etc.

Porque parece isto hoje tão difícil de conseguir, não só na Instrução Primária, como no Secundário e, às vezes, até nos Cursos Universitários ?

Reconheço que pode haver casos em que nos seja especialmente difícil evitar alguns estrangeirismos, mas, mesmo nesses casos, deveremos considerá-los como tomados de empréstimo, desejavelmente temporário, até que colectivamente nos revelemos capazes de engendrar os equivalentes vernáculos mais ajustados à sua substituição.

Há, de facto, determinadas inovações tecnológicas que os impõem como uma inevitabilidade. Por exemplo, como traduzir apropriadamente o termo «software»?

Programação informática, além de não ser exacto, obriga à multiplicação vocabular, problema sempre presente, quando se pretende traduzir do inglês, idioma por natureza conciso, mais ainda, provavelmente, que o latim.

O mesmo poderíamos dizer de muitos outros termos ingleses de difícil tradução exacta. Mas isso não deveria impedir-nos de, esforçadamente, procurar encontrar os seus equivalentes, em português vernáculo.

Primeiro, porque tal esforço decorre de uma curial obrigação de qualquer falante natural do português para com o seu património linguístico. É nosso dever sumário falar a língua materna com correcção. Já não salto daqui para a famosa frase do Eça que nos aconselhava a falar patrioticamente mal qualquer língua estrangeira.

De resto, isto não era mais do que uma sua blague, galicismo muito do seu agrado, como muitos outros, desde o blasé, ao ennui, ao négligé, ao outrance, ao vol d’oiseau, ao malgré lui, ao demi-monde, ao bas-fond, ao avant la lettre, ao buffet, ao boudoir, ao bouquet, ao cliché, ao couché, ao coupé, ao degagé, ao élite, ao frappé, ao frisson, ao frondeur, ao gavroche, ao divertisssement, ao pot-pourri, ao première, ao matinée, ao soirée, ao poseur, ao pourboire, ao ouverture, ao rendez-vous, ao régie, ao souvenir, ao tête-à-tête, ao tableau, ao tournée, ao soustien-gorge, ao tounure, ao nuancée, ao charme, ao délicatesse, ao parvenu, ao passe-partout, ao joie-de-vivre, ao débâcle, ao déjà vu, ao noblesse oblige, etc., etc.

Tudo isto mereceria um estudo dedicado, como Campos Matos tem feito com as citações de Eça e o uso, por parte deste, de expressões latinas, como se pode ver em trabalho recente deste devotado estudioso da obra do grande Mestre da Literatura Portuguesa, notável criador do português moderno, o coloquial e o literário, ainda hoje largamente utilizados por todos nós, mesmo se de tal inconscientes.

Daqueles galicismos típicos do Eça, já quase ninguém hoje faz uso, nem na forma literária. Dirão alguns que o mesmo virá a suceder com os actuais anglicismos.

Infelizmente, não estarei tão optimista, porque a preocupação com a compostura do idioma deixou de ser uma prioridade dos nossos concidadãos, nem tão-pouco me parece que os Professores se incomodem suficientemente com isso, na sua moderna propensão para desculpar ou mesmo justificar os erros dos estudantes. Certos Professores até já se sentem embaraçados em classificar expressões utilizadas pelos alunos como erradas, tão fundo chegou a inibição.

Lembremo-nos do que se passou em 2001, com a edição do Dicionário do Português Contemporâneo, produzido sob a chancela da Academia das Ciências de Lisboa, com o generoso subsídio da Fundação Calouste Gulbenkian, que, finalmente nos tirou da ignomínia de mais de 200 anos, desde que a primeira tentativa de elaboração do Dicionário da Academia havia parado no vocábulo «azurrar».

Por pilhéria, dizia-se que os Académicos se haviam por aí ficado, conjugando colectivamente esse verbo de forte sonoridade.

Pois bem, dessa vergonha, finalmente nos libertámos, mas com essa libertação veio também a incoerência do espírito da presente época, com o nefando pensamento politicamente correcto, que, paralisado ante a incapacidade de assinalar o erro, absolveu, sancionou ou abrigou muitos termos incorrectos, espúrios, como o «bué», ao mesmo tempo que ignorava imensos outros, como «asinha», por ex., que continuam, no vasto património da língua, a ser utilizados por artistas e escritores, sendo necessário conhecê-los para compreender textos dos séculos XX e XIX e, ainda mais, para poder chegar aos dos séculos anteriores.

Se ao uso dos galicismos correspondeu uma época de hegemonia da cultura francesa, agora, ao dos anglicismos corresponde a de uma outra hegemonia, a da cultura que se expressa em língua inglesa, não tanto por via britânica, mas por influência do poderia económico, político e militar dos EUA.

O problema é que esta só nas áreas científicas e tecnológicas se revela como de categoria igual ou superior à das suas anteriores contendoras europeias. Nos demais ramos, tal não acontece.

E, se avaliarmos a cultura norte-americana de exportação, a que é veiculada pelo Cinema, pela TV e, em geral, pelo mundo do audiovisual, teremos de considerar que quase nada daquilo que hoje vem dos EUA vale um pataco, predominantemente gerando embrutecimento e alienação.

Comprovadamente lá, nos EUA, já esta degradada cultura produziu estragos extensos e duradouros; na Europa, causará, com toda a probabilidade, o mesmo nocivo efeito. Este mal é de tal modo profundo e avassalador que, nos EUA, até tem notoriamente prejudicado a selecção de candidatos para o exercício do poder nos lugares mais altos da hierarquia do Estado.

Como o paradigma americano tende a reflectir-se, passado algum tempo, no mundo inteiro, primeiramente, na Europa, teme-se, compreensivelmente, que o mesmo tipo de fenómeno se venha a registar aqui por estas - outrora - mais selectas paragens.

Estas amenas considerações, note-se, não dimanam de nenhuma desafeição pela cultura norte-americana, mas resulta tão-só da constatação da sua grandemente imprestável produção actual, bem visível na sua dita cultura de massas, que, na verdade, tantos adeptos conquista pelo planeta, incluindo na nossa Europa, onde já floresceram tipos bem mais interessantes de cultura, em qualquer área que se queira nomear.

Mais uma razão para a nossa prevenção, quanto à adopção de modas e paradigmas, só pelo facto de haverem sido cunhados além-fronteiras. Assim como fomos eliminando os galicismos, também deveremos começar a evitar e a substituir gradualmente os anglicismos por termos próprios da nossa língua, como passo elementar da defesa da nossa dignidade como Povo antigo, soberano, com uma personalidade cultural longamente afirmada.

Para os que pensam que isto é utopia, recordaria o que se passou aí pelos anos 30 do século XX, com um tema eminentemente popular – o Futebol/Football – de onde, com persistência e determinação, se apagaram os termos ingleses, como referee/árbitro, forward-centre/avançado-centro, goal-keeper/guarda-redes, back/defesa, middle-center/meio-campista, liner/fiscal de linha, half-back/meio-defesa, free-kick/livre directo, corner/canto, etc., etc.

Algum pundonor e alguma imaginação de uns quantos determinados pioneiros operaram a transformação da linguagem inicial, completamente ligada ao idioma da origem deste desporto de massas.

Se isto foi possível, numa época de muito baixa escolaridade da população portuguesa, porque não acreditar que seja, também hoje, possível idêntico esforço vitorioso noutros áreas da vida quotidiana actual ?

Para conclusão do tema, acrescentarei ainda algumas notas sobre o fundo cultural em que estes fenómenos linguísticos se têm desenvolvido.

Apesar dos largos milhares de professores e alunos que o actual Sistema de Ensino congrega, um pernicioso espírito de incúria para com as coisas nacionais se regista em quase todo o lado. E, uma vez que o interesse da cultura nacional cesse de motivar os Professores, naturalmente que este espírito contagia negativamente as mais novas gerações de portugueses, a quem aquele interesse não tenha ainda chegado a tocar.

As causas que, no presente, têm concorrido para este fenómeno são múltiplas e a sua gradação relativa, porventura difícil de estabelecer. A meu ver, tudo radica num grande complexo de ordem política das elites político-culturais que foram sucessivamente ocupando o poder após a Revolução de Abril de 1974.

Fortemente causticadas pelo anterior regime de Salazar-Caetano, assumidamente não democrático, na sua origem e na sua longa duração, regime, como se sabe, de inequívoco pendor nacionalista, desenvolveram as elites que o combatiam uma aversão muito acentuada, uma espécie de alergia a tudo o que lhes parecesse sobrevalorização ou simples destaque de elementos ou factores que caracterizam a cultura portuguesa, sem se importarem com as consequências nefastas desta sua imponderada atitude.

Da persistência de tais complexos, temos colhido alguns nocivos frutos, de que destaco :
i) A Perda de autoridade dos Professores nas Escolas, até hoje nunca mais recuperada;
ii) a instabilidade dos programas oficiais emanados do Ministério da Educação, a maior parte dos quais espantosamente confusos, questionáveis e contraditórios, logo, desmotivadores para aqueles seus imprescindíveis agentes, os Professores;
iii) a falta de autoridade das famílias sobre os jovens que foram crescendo entregues à «formatação cultural» televisiva, altamente deformadora, conjugada com tantos factores desincentivadores de uma sã educação, acabaram por criar o ambiente responsável pelo progressivo alheamento de Professores, alunos e famílias, para com as matérias que formam o âmago da nossa identidade: a Língua, a História, a Geografia, a Literatura e as manifestações de cultura popular, como as Cantigas, as Danças, o chamado folclore nacional, as canções da música dita ligeira, mas também as Lendas, os Adágios, os usos e costumes das regiões, etc., incluindo a música erudita de inspiração nacional, como Viana da Motta, Luís de Freitas Branco e Lopes Graça, entre outros, estudaram, recriaram e ajudaram a divulgar, hoje sem apreço significativo, nem, muito menos, continuação.

Durante décadas, se não centúrias, este foi o «líquido amniótico» da nossa cultura de raiz nacional. Com o advento das teses do neo-liberalismo económico, crescentemente adoptadas de meados de 80 para cá e, encontrando-se o ambiente cultural nacional profundamente degradado, impreparado, para qualquer esboço de resistência, todas estas tendências negativas atrás mencionadas funestamente se adensaram.

Na realidade, sob tal enquadramento, a cultura nacional não podia senão definhar. Primeiro, pelos complexos das gerações formadas na chamada luta anti-fascista que, na sua obsessão combativa, foram destruindo esse rico filão da energia de um Povo, que é a sua cultura de raiz, a partir da qual esse Povo fabrica a seiva que há-de alimentar todas as restantes manifestações superiores do seu espírito distintivo.

Depois, pela fácil adesão da esmagadora maioria do Povo a outros tipos de cultura de baixo valor intrínseco, que é veiculada em doses maciças, entorpecentes, diria, pela generalidade dos órgãos da comunicação social, operou-se a enorme degradação cívica e cultural a que hoje assistimos. Eis-nos, por isso, assim chegados ao início do século XXI, o das grandes realizações tecnológicas que absolutamente deslumbram multidões, mesmo se a maioria dos cidadãos não faz a menor ideia dos fundamentos científicos que as tornaram possíveis.

Todos estes novos, maravilhosos artefactos, que os avanços científicos e tecnológicos nos têm proporcionado, se usam hoje, quase como fins em si mesmos, perdendo-se rapidamente a noção da sua primitiva função, da sua básica utilidade, para deles sobressair o seu papel vincadamente ostentatório, convenhamos, grandemente alienante. E não se pense que são apenas as pessoas intelectualmente mais desprovidas as suas vítimas privilegiadas.

Se há, de facto, coisa fácil de confirmar é que a alienação consumista atinge tudo e todos, sem distinção de classe ou de riqueza, quer consideremos esta última condição do ponto de vista intelectual ou material, tal o fascínio que a superabundância de bens sobre nós exerce. Contra tantos factores adversos, é difícil lutar para impor uma cultura diferente, se não houver um trabalho educativo de base, persistente, conjugado entre a Família, a Escola e as Instituições Sociais, em geral.

Mas, primeiro, é preciso que nos desembaracemos todos dos complexos ainda subsistentes para com a Cultura Portuguesa, procurando conhecê-la, estudá-la, divulgá-la e, sem nenhum acanhamento, defendê-la : do preconceito de alguns, da ignorância de muitos, tirando-a da sua actual «apagada e vil tristeza», pela pouca conta em que ela tem permanecido, pelo escasso caso que dela temos feito.

Aquilo que se passa com a Língua que falamos, excessivamente carregada de estrangeirismos de uso pedante, que não preenchem, na maioria dos casos, nenhuma falta real ou necessidade insuperável no léxico vernáculo, é apenas um dos múltiplos sinais da enorme incúria com que tratamos os símbolos mais fortes da nossa identidade cultural.

Sem orgulho na sua cultura de raiz, dificilmente um povo consegue afirmar-se. E, sem esse esteio essencial, nada depois arranca: nem a recuperação económica, que, apesar de garantida, nunca mais se enxerga, nem o civismo, que não nasce no vazio espiritual e moral, nem muito menos, a nossa desejada realização colectiva, como Comunidade progressiva, empreendedora, gozando de algum conforto, num estado de bem-estar social que nos faça sentir razoavelmente felizes, que, para isso, sim, é que devemos viver.

Eis aonde nos pode levar uma simples reflexão sobre o uso imoderado dos estrangeirismos na Língua Portuguesa.

AV_Lisboa, 14 de Março de 2012

12.3.12

 

O Acordo Ortográfico da Nossa Desunião ( Cont., com alterações introduzidas )

Passemos agora à apreciação ainda que sumária do aspecto jurídico da questão :


O AO de 1990 começou por ser um documento elaborado sob a forma de um Tratado Internacional, no qual intervinham 7 estados soberanos: Portugal, Brasil, Cabo Verde, Guiné, São Tomé e Príncipe, Angola e Moçambique.


Nesta qualidade, o documento para ser aplicado teria de ser aprovado e ratificado por todos os estados nele intervenientes.


Dizia o texto do Acordo no seu Artigo 2.º que os Estados tomariam «as providências necessárias, com vista à elaboração, até 1 de Janeiro de 1993, de um vocabulário ortográfico comum da língua portuguesa, tão completo quanto desejável e tão normalizador quanto possível, no que se refere às terminologias científicas e técnicas».


E, no Artigo seguinte, o 3.º, anunciava-se que o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa entraria «em vigor em 1 de Janeiro de 1994, após depositados os instrumentos de ratificação de todos os Estados junto do Governo da República Portuguesa».


Logo aqui se adivinhava obstáculo de monta, porque, se elaborar um Vocabulário Ortográfico comum já seria difícil, harmonizar ou normalizar as terminologias científicas e técnicas, parecia missão hercúlea, quase impossível, dada a divergência, neste âmbito, entre a prática brasileira e a seguida em Portugal e nos países africanos.


Daí que o AO não tivesse entrado na data prevista. Até que chegados a 1998, surge o primeiro expediente legislativo para obstar ao impasse. Consistiu ele em rapar, no Artigo 2.º a referência a qualquer data para a elaboração do vocabulário ortográfico comum. E assim se produziu, na cidade da Praia, em Cabo Verde, em 17 de Julho de 1998, o Protocolo Modificativo ao AO da LP, aqui designado de primeiro. Na altura, ainda não se cogitava a necessidade de um segundo.


O tempo foi decorrendo sem que aparecesse esse famigerado vocabulário ortográfico comum, continuando o Acordo sem condições técnicas para entrar em vigor, além de que alguns países relutavam na sua ratificação.


De novo, para contornar tão inconveniente situação, aparece a ideia de formular outro Protocolo Modificativo ao AO, o Segundo Protocolo, reunindo-se a V Conferência dos Chefes de Estado e de Governo da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa ( CPLP ), na ilha de São Tomé, em 26 e 27 de Julho de 2004, já com o seu oitavo membro, entrado em 2002, a República Democrática de Timor-Leste, para introduzir alteração expeditiva ao texto do Acordo.


Consistiu a alteração, desta vez, em dar ao Artigo 3.º a seguinte matreira redacção : «O AO da LP entrará em vigor com o terceiro depósito do instrumento de ratificação junto da República Portuguesa».


Com tal manobra, ultrapassava-se não só uma dificuldade técnica, como ao mesmo tempo se contornava a necessidade da ratificação geral, sinal de aprovação e consentimento para a aplicação do Acordo.


Ora tal expediente, conquanto engenhoso, ofende o espírito e a letra do Tratado inicial, que propugnava a universalidade da aplicação do Acordo entre os seus signatários, desrespeitando igualmente o entendimento que rege este tipo de Tratados Internacionais, regulados pela Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, que Portugal subscreveu em 1969.


Por ela se prevê que os documentos deste tipo só entrem em vigor na ordem nacional depois de os mesmos haverem ficado a vigorar na ordem internacional. Ou seja, só depois de ratificados por todos os estados intervenientes os documentos estão aptos a serem aplicados na ordem interna de cada um deles.


Isto que parece óbvio a qualquer cidadão foi objecto de distorção ou menosprezo por parte de certos responsáveis da CPLP, onde até figuravam alguns juristas, que nunca poderiam alegar desconhecimento de semelhante interpretação, de resto, a única que se afigura lógica.


Abordemos, por último, o aspecto político ou político-jurídico da questão. Também aqui existem observações curiosas a tecer. Atente-se que, quando o Acordo foi primeiramente apreciado na sua vertente política em 1991, era Santana Lopes Secretário de Estado da Cultura, num Governo de maioria absoluta de Cavaco Silva. Temos, assim, portanto as duas maiorias políticas governamentais preponderantes em Portugal, nos últimos 35 anos, comprometidas com a adopção do contestável Acordo.


Ninguém do pessoal político destes dois Partidos hegemónicos no Regime pós – 25 de Abril de 1974 se apoquentou com o facto de não estarem sequer preenchidas as condições técnicas previstas, no corpo do texto do próprio Acordo, como necessárias para a sua entrada em vigor.


Pela resolução da Assembleia da República n.º 26/91 e pelo Decreto do Presidente da República n.º 43/91, ambos de 23 de Agosto de 1991, Portugal preparou-se para perfilhar este nocivo documento presuntivamente normalizador da ortografia da LP, tecnicamente mal formulado, como o linguista da Universidade Nova de Lisboa, António Emiliano profusamente demonstrou em variados artigos publicados em Revistas e órgãos da Comunicação Social, posteriormente reunidos em livro intitulado «O Fim da Ortografia – Comentário Razoado dos Fundamentos Técnicos do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, da Guimarães Editores, 2008».


Entretanto, foram variando os responsáveis governativos, com António Guterres a suceder a Cavaco Silva, depois com Durão Barroso e com Santana Lopes, para passar a José Sócrates, entre 2005 e meio de 2011, e, desde esta altura até ao presente, com Passos Coelho, podendo nós dizer que sempre com idêntica inépcia ou inconsciência do mal cometido.


Os órgãos políticos portugueses – Parlamento, Governo e Presidência da República – não só assistiram de modo acrítico, estranhamente apático, aos expedientes do Protocolos Modificativos do Acordo, como agravaram regularmente a sua conivência com eles, ao produzirem sucessivos instrumentos jurídico-políticos de preparação para a aplicação do Acordo.


Assim, a Assembleia da República volta a emitir nova Resolução, a n.º 35/2008, em 16 de Maio e o Presidente promulga outro Decreto, o n.º 52/2008 de 29 de Julho de 2008, determinando a entrada em vigor do Acordo, após o depósito do instrumento de ratificação do Segundo Protocolo Modificativo ao Acordo, estabelecendo também um prazo de seis anos a partir da data deste depósito, para a utilização da ortografia preconizada no Acordo, a ela vinculando todos os órgãos do Estado, incluindo «os documentos provenientes de entidades públicas, manuais escolares e demais recursos didáctico-pedagógicos com valor oficial ou legalmente sujeitos a reconhecimento, validação ou certificação, à data existentes»


Prosseguindo a sua contumácia legífera, o Ministério dos Negócios Estrangeiros emitiu ainda um Aviso, o n.º 255/2010, de 13 de Setembro de 2010, lembrando que o Acordo tinha entrado em vigor em Portugal, com o depósito do instrumento de ratificação da Resolução da AR n.º 35/2008, pelo Decreto do PR n.º 52/2008, ambos publicados no Diário da República, 1.ª série, n.º 145, de 29 de Julho de 2008.


Tendo aquele depósito sido efectuado em 13 de Maio de 2009, considerava-se esta data como a da entrada em vigor do Acordo em Portugal. Finalmente, o fecho desta abóbada legislativa-acordista-ortográfica caberia ainda, antes da sua despedida, ao Governo de José Sócrates, que, em 9 de Dezembro de 2010, elaborou a Resolução do Conselho de Ministros n.º 8/2011, publicada no DR, 1.ª Série, N.º 17, de 25 de Janeiro de 2011.


Esta Resolução, redigida em prosa absolutamente delirante, em desproporcionado e despropositado texto preambular, sumamente laudatório da acção governativa, é que vai determinar que, a partir de 1 de Janeiro de 2012, o Governo e todos os serviços, organismos e entidades sujeitos aos poderes de direcção, superintendência e tutela do Governo apliquem a grafia do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, bem como estipula que a redacção do Diário da República e o sistema educativo, em geral, no ano lectivo de 2011-2012, igualmente dele façam uso corrente.


Sublinhe-se a propósito que, dos 12 parágrafos do preâmbulo da citada Resolução, oito – 66 % – são de puro exercício de propaganda e auto-elogio do governo socrático que vai atribuindo ao Acordo todos os poderes e acções benfazejas, como a defesa e a promoção internacional da Língua, o reforço do seu papel como veículo de comunicação internacional na criação de oportunidades, na exploração do seu potencial económico, na difusão do conhecimento, como suporte de discurso científico, como expressão literária, cultural e artística, para o estreitamento de laços culturais, como factor de desenvolvimento, etc., etc., e nem a referência ao combate à pobreza lá poderia faltar.


O texto é auto-propulsivo e, a certa altura, embala mesmo em catadupa demagógica, desenvolvendo-se em insuportável tautologia discursiva, dentro do mais extremado e dementado abuso retórico. Vale a pena ler a peça para se comprovar aonde pode conduzir a demagogia infrene, praticada em ambiente de alienação ideológica, colectivamente exaltada, como deverá ter acontecido naquele ajuntamento de personalidades governativas, putativamente socialistas.


Estou em crer que, nem nos períodos mais demenciais do PREC, nos anos de brasa de 1974-75, se terá atingido picos tão elevados de discurso demagógico, auto-encomiástico, como aqueles que se percebem do texto preambular daquela Resolução, sem dúvida histórica, do Conselho de Ministros de José Sócrates de 9 de Dezembro de 2010.


O fogo de artifício demagógico estaria nele tão aceso que, na Resolução, até se faz referência à adopção do Vocabulário Ortográfico do Português, produzido em conformidade com o Acordo Ortográfico, sendo certo que ainda hoje ele não existe, como preconiza o Art. 2.º do dito, com vista à sua aplicação, além de que o classifica de comum, i.e., o mesmo para todos os Estados intervenientes no Acordo, com a superveniente harmonização da terminologia técnica e científica, desiderato, só de si, verdadeiramente ciclóplico.


Faz ainda a Resolução alusão a ferramentas de conversão ortográfica, como o programa informático Lince, desenvolvido pelo Instituto de Linguística Teórica e Computacional – ILTEC – disponível, juntamente com o Vocabulário, de forma gratuita, nos sítios da Internet dos Departamentos Governamentais, tudo suportado com financiamento público do Fundo da Língua Portuguesa, de criação governamental, como seria de prever.


Que toda esta demência política tenha saído de uma cabeça estouvada, compreende-se, embora se não aceite e, quando muito, se lamente, conhecendo a personalidade algo desequilibrada de onde ela proveio, mas já não se sabe o que dizer de toda a restante classe política, que deveria ter analisado técnica e politicamente o documento legislativo, denunciando-o à opinião pública, propugnando a sua revogação, se não imediata, tão pronta quanto politicamente oportuna.


A verdade é que ela ficou vazada em múltiplos diplomas legais a produzir efeitos, qual cadáver adiado que procria, segundo a expressiva frase do nosso distinto Fernando Pessoa, que no seu tempo também manifestou profundo desagrado pelas mexidas ortográficas, no seu caso, operadas pela Reforma Ortográfica de 1911, do reputadamente douto filólogo Aniceto Gonçalves Viana, que, apesar de tudo, ainda soube preservar intactas aquelas consoantes pré-tónicas c e p, chamadas mudas, mas com efeito sonoro na abertura das vogais que as antecedem, nos vocábulos em que figuram, como atrás várias vezes se deixou exarado.


Que diria o mesmo Pessoa se lhe tivessem proposto um texto tão nocivo para a nossa fala, como o do Acordo Ortográfico de 1990 ?


Tenhamos, todavia, esperança numa ainda possível rectificação, remodelação ou completa reelaboração do texto ora proposto, o qual, como se sabe, estará até 2015 em fase de aplicação experimental, só depois podendo passar a definitivo, acaso os Portugueses nisso consintam.


Queira Deus que não. Nihil desperandum.


AV_Lisboa, 11 de Março de 2012


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